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“Cadê meu celular? Eu vou ligar prum oito zero
Vou entregar teu nome e explicar meu endereço
Aqui você não entra mais
Eu digo que não te conheço
E jogo água fervendo
se você se aventurar
Eu solto o cachorro
E, apontando pra você
eu grito péguix guix guix guix
Eu quero ver você pular,
você correr na frente dos vizinhos
‘Cê vai se arrepender
de levantar a mão pra mim”

Música Maria da Vila Matilde
Elza Soares

Ao longo de todos esses anos, foram as mulheres negras que garantiram a sobrevivência de suas famílias e pavimentaram o caminho para as gerações futuras.

Minhas avós, que nasceram por volta de 1930 no interior da Bahia, tiveram famílias grandes. Cerca de 10 filhos, cada. Já com relação à educação formal, não tiveram o direito nem a oportunidade de chegar ao que chamamos hoje de ensino fundamental, foram direcionadas ao trabalho doméstico em casas alheias, braçais em plantações, até que pudessem conseguir um trabalho formal em alguma organização de sua cidade.

A luta dessas mulheres possibilitou a sobrevivência de seus filhos e propiciou a eles, mesmo com várias dificuldades, a possibilidade de concluir o segundo grau. Era o objetivo anunciado delas: “Eu vou formar vocês, para que possam fazer algo de melhor na vida”. Conseguiram! Os mais velhos ainda tiveram que abandonar a escola para ajudar no sustento de casa, mas a maioria conseguiu finalizar a escola e alguns até com o antigo grau de magistério, seguiram o ofício de professores. Porém a universidade ainda não era possível e logo a realidade os chamou aos seus trabalhos, todos em condições melhores do que aqueles desenvolvidos pelas mães.

Quando chegou a minha vez, a regra era clara: “você vai estudar!. Eu não precisei trabalhar na adolescência porque as condições básicas eram garantidas pela minha rede familiar. Quando faltava algo em casa, as portas das tias e tios estavam abertas e colocando água no feijão todo mundo comia. E aqui estou hoje, escrevendo esse texto como parte de uma atividade da disciplina de Antropologia da minha segunda graduação, intercalada do mestrado em ciências da computação. Todas as formações feitas em universidade pública. São lugares novos para toda a minha família. O ponto desse relato não são os alcances individuais ou meritocracia, porque esses não existem, mas sim, o caminho pavimentado a cada geração.

Para famílias negras as mudanças não são tão rápidas, e passam por vários atravessamentos sociais que muitas vezes recaem de forma esmagadora nas costas das mulheres. Desse pequeno relato existem entrelinhas que são estatísticas compartilhadas pela população negra em geral, com as devidas especificidades possíveis de classe, gênero, região e religião, podemos destacar:

  • A exploração de mulheres em ocupações informais, sem nenhum espécie de direito, com condições de trabalho extremamente ruins, sendo elas o maior grupo demográfico da população brasileira;
  • O machismo que foi um dos motivos para que uma de minhas avós não pudesse estudar - pra que ela não escrevesse carta pra homem;
  • O alcoolismo que recae às populações negras como fuga da dura realidade herdada da escravização e por vezes com o agravante de ser um fator para a violência doméstica contra mulheres;
  • As duplas ou triplas jornadas de trabalho para essas mulheres: i) conseguindo o sustento na rua; ii) trabalho doméstico na sua casa; iii) criação de seus filhos e comunidades. Aqui vale ressaltar que, no futuro, esse filhos servirão de força de trabalho para o motor econômico da sociedade.

Por muitas vezes, em meio a injustiça sofrida por seus pares, comunidades ou até violência de seus homens, são essas mulheres que arrumam uma força sobre humana para dar conta da manutenção física, emocional e até mesmo espiritual sua e de famílias inteiras. É como diz o poema de Conceição Evaristo - “A noite não adormece nos olhos das mulheres” - e a música Maria de Vila Matilde de Elza Soares, às mulheres são atribuídas o peso de estar sempre atentas a todo tipo de ameaça e em determinados momentos usarem o que estiver na sua frente para se defender.

Contudo, é importante ressaltar o seguinte: embora esse texto faça um relato de orgulho, gratidão e reverência a engenhosidade e coragem de mulheres negras, de forma alguma almeja incentivar o estereótipo de que “as mulheres negras suportam e dão conta de tudo”. Esse é um ensaio sobre o papel das mulheres na sociedade brasileira - elas são a sustentação da sociedade e isso tudo a custo da exploração desumana que sofrem - toda a sua produção familiar, acadêmica, gastronômica, espiritual, cultural e artística custa a essas mulheres suas vidas, nos mais diversos níveis. A sua exploração acontece há gerações, sem nenhum reconhecimento ou reparação. E é isso que precisamos parar.

Texto submetido à Discipina de Introdução à Antropologia com o Prof. Valdélio Silva no Curso de Ciências Sociais UNEB.